8 de agosto de 2011

Essa é pra tocar no rádio (11)

Chico Buarque – “O que eu digo, já disse e repito é que há muito pouca crítica de música. Há muita crítica de letra. É muito difícil alguém que compreenda a parte musical mesmo. Então é muito difícil encontrar quem saiba escrever sobre Tom Jobim. Nem compensa, é claro. Você não vai publicar uma partitura num jornal, publica uma letra (...). Para mim, isso é frustrante, porque eu vejo a letra tão dependente da música e tão entranhada na melodia, meu trabalho é todo esse de fazer a coisa ser uma só, que, geralmente, a letra estampada num jornal me choca um pouco. É quase uma estampa obscena (grifos meus).”


O comentário de Chico (em entrevista a Augusto Massi, no site do compositor) ganha importância com a audição de As cidades, álbum lançado em 1998. Destaco trechos de faixas do disco, exemplos de casamento perfeito entre letra, melodia e arranjos.

“Carioca”. a) “Gostosa, quentinha (quem vai?) tapioca / O pregão abre o dia...”. A entonação das duas primeiras palavras é típica do vendedor de rua; b) “O poente da esquina das tuas montanhas...” A melodia faz aqui uma parábola: uma curva ascendente, e descendo na última sílaba da palavra final.

“Iracema voou”. a) “Leva roupa de lã e anda lépida”. O adjetivo é pronunciado de modo acelerado; b) “Ambiciona estudar canto lírico”. Fazendo eco a este verso, as cordas compõem uma frase melódica, momento de maior emoção da canção; c) “Não dá mole pra polícia, se puder vai ficando por lá”. As notas correspondentes ao trecho grifado compõem um vai-e-vem que mimetiza a sirene do carro policial.

“A ostra e o vento”. “Vai e onda, vem a nuvem, cai a folha, quem sopra meu nome?”. Nestes versos e em alguns subsequentes, a linha melódica é descendente/ascendente/descendente/ascendente. Refletindo o movimento da onda.

O que eu teria a dizer sobre este álbum não cabe num post. “Iracema voou”, sozinha, mereceu uma análise de mais de duas páginas, numa oficina de música popular que preparei. “Você você”, parceria com Guinga, causa um estranhamento inicial, logo desfeito pelo subtítulo: uma canção edipiana. Nela, um fino retrato da relação filho/mãe, com sua carga quase patológica. “Cecília”, parceria com L.C. Ramos, impressiona pela sutileza, a começar pelo nome da “amada”, de sonoridade perfeita para ser “murmurado e soletrado no escuro”.

Paro por aqui. Minha intenção era dar a você um aperitivo.

As cidades está longe de ser um disco com canções “assobiáveis”. Um disco meio anacrônico, para ouvintes sem pressa num mundo acelerado, em que os prazeres são instantâneos. Um álbum cuja riqueza é diretamente proporcional ao esforço investido em sua audição.