3 de março de 2011

De Márcio Faraco para Carlinhos Brown

Não tenho o hábito de servir pão amanhecido ao leitor. Abro a exceção desta vez, por se tratar de uma análise que fiz antes da publicação dos artigos para a revista (ver seção “egopress”), que têm o mesmo jeitão do texto abaixo. Aproveito que agora conto com o recurso de ocultar parte do texto, para não assustar quem acaba de chegar, com um post quilométrico. Aí vai.

Chuva de Vidro, de Márcio Faraco. (CD Com tradição, Universal Music France, 2005)

Em frente à multidão alucinada
Eu escolhi o seu lado
Aí levei garrafa

Disseram, disseram que era o dia errado
Mas qual o dia certo
Nesse mundo virado?

Visavam seu corpo em movimento
Mas ali naquele momento
Acertaram nossa alma

Olha a garrafa no ar!

Chuva de vidro
Pedras do Rio
Água na Barra
Assovio
Vilã manada
Nada ouviu
Do ouro do povo do Brasil

Vivi pra ver esse pesadelo
Não quero ver mais uma vez
Verões de tempestades de gelo
E a nação no corredor polonês

Jogando uma pedra no espelho
Não vou deixar de ser o que sou
Um violeiro é um violeiro
E o baião não é rock and roll

Faraco dedicou esta canção a Carlinhos Brown. Convidado para cantar no festival Rock in Rio, janeiro de 2001, Brown subiu ao palco na mesma noite em que tocariam as bandas Oasis e Guns’n Roses. Partiu dos fãs desta última a saraivada de garrafas d’água na direção do cantor, enquanto ele, que descera uma passarela em meio ao público, cantava seu hit A namorada.

Disseram que era o dia errado. Muito se falou a esse respeito. Surgiu, entre outros, o comentário de que Brown jamais deveria ter sido escalado para tocar naquela noite, para um público como os fãs de Guns n’Roses. Sua declaração sobre estar no “dia errado”: “Eu tinha de estar ali naquela noite, para passar o meu recado àquela molecada, que infelizmente renega a música de seu país".

Pedras do Rio
. Clara referência ao nome do festival, Rock in Rio. Dentre as várias acepções da palavra inglesa rock (balanço, embalo, apoio, amparo, rocha, rochedo, penhasco), Faraco optou pela analogia com as pedras: garrafas voavam na direção de Carlinhos Brown, numa nítida evocação ao ritual de apedrejamento que ainda existe em países muçulmanos.

Água na Barra. O verso é pronunciado com as sílabas escandidas. Há um trocadilho auditivo, aqui: além da clara alusão ao bairro carioca, a impressão é que também se ouve A Guanabara. Impressão reforçada pelo fato de o “erre” receber uma pronúncia intermediária entre aquela dada às palavras com dois “erres” e às de um só. Notar que no encarte bilíngue (português-francês)*, ao lado desse verso consta “Jets de bouteilles d’eau à Barra”, ou seja, “arremesso de garrafas de água na Barra”, bem como a referência à Barra como bairro carioca. Se na tradução para o francês a poesia e a prosódia do verso foram perdidas, em contrapartida o episódio foi contextualizado para o ouvinte/leitor francês.
Vilã manada
nada ouviu
do ouro do povo do Brasil


Além de evocar a irracionalidade do público, manada também remete a um grupo numeroso de pessoas passivas, acríticas. É comum que, ao fazer parte do coletivo, o homem tenda a abdicar de sua capacidade de discernimento, delegando-a ao grupo. As decisões deste passam a ser soberanas, em detrimento daquelas tomadas pelo indivíduo, que busca preservar sua imagem perante os demais. Sua identidade é, portanto, diluída.

A questão da identidade, com efeito, é retomada:

Jogando uma pedra no espelho
Não vou deixar de ser o que sou


Que imagem temos de nós mesmos? Aceitamos nossa identidade? Em que medida nosso “complexo de vira-lata” está sendo alimentado? Ainda nos divertimos com frases do estilo “Este país tem saída: Galeão e Cumbica”? Prestando ou não atenção ao “ouro do povo do Brasil”, não há como fugir do espelho. Ele segue refletindo nossa imagem, com a qual temos de lidar.

Não quero ver mais uma vez (...) a nação no corredor polonês. Curiosa, a definição dada pelo dicionário Houaiss para “corredor polonês”: “uma brincadeira [grifo meu] entre crianças, em que se forma uma passagem estreita formada por duas fileiras paralelas de pessoas que batem com as mãos, pés e/ou com objetos no indivíduo que, por punição, castigo ou brincadeira, deve atravessá-la”.

Brincadeira? A questão é identificar, em meio às vaias e à saraivada de garrafas, o limite entre o componente lúdico e o sádico. É oportuna, a lembrança do assassinato, em 1997, do índio Galdino Jesus dos Santos, em Brasília, por um grupo de adolescentes que, após ter ateado fogo em seu corpo, declararam no Tribunal de Justiça que tinham somente a intenção de “fazer uma brincadeira”. Faraco, ao registrar de modo poético o lamentável episódio do Rock in Rio, evoca nosso passado recente.

Elementos musicais reforçam o sentido do texto. É o caso do ritmo acelerado da canção, com o baixo participando ativamente da linha melódica, a percussão em primeiro plano. Duas referências sutis aqui: o ritmo reforçando a homenagem a Carlinhos Brown, cuja música tem forte base percussiva, e a alusão ao frenesi da cena relatada pelo compositor. Ritmo que faz eco à agitação e ao tumulto retratados no texto da canção.

Sincronicidade, e das finas: minutos depois de terminar este texto, abro a porta de casa* e deparo com uma garrafa de água mineral largada sobre o canteiro. Canteiro transformado em lixão a céu aberto, e repare só com que objeto... A agressão a Carlinhos Brown é a mesma de que sou alvo. É uma mera questão de grau.

* À época, na Pompéia, em Sampa.