25 de janeiro de 2012

O mau tradutor de manuais

Crônica deliciosa, publicada no guia Divirta-se do Estadão. Compartilho, e pego uma carona: verdade, Belchior tampouco compôs “Medo de aeronave”.
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Ovni
De Ricardo Freire
“Informamos que devido à mudança de posicionamento da aeronave o seu embarque, quando efetuado, será realizado pelo portão 9.”
Eis uma frase que deixa possesso qualquer passageiro. Mas o que a mim incomoda mais nem é zanzar pela sala de embarque. É ouvir “aeronave” em vez de “avião”. Eu sei, você nem nota. Uma companhia aérea chamar avião de aeronave é a coisa mais natural do mundo. Aposto que de vez em quando você deixa escapar um “aeronave” sem querer.
Quem foi o infeliz que fez isso com você? Provavelmente um mau tradutor de manuais. Os maus tradutores de manuais são os responsáveis pela maioria das palavras mal contrabandeadas para o português. Esse “aeronave” decerto vem de uma tradução de “aircraft”. Em inglês até para entender o porquê de não usarem “airplane” – pode ser que soe “aeroplano”, algo que lembra mais teco-teco do que jato.
Só que em português do Brasil a gente não voa – a gente “vai de avião”. “Aeronave é algo frio e desprovido de charme – o equivalente aéreo de um “automóvel”, ou uma “embarcação”. Tom Jobim não compôs o “Samba da Aeronave”. Uma mulher – perdão – gostosa não é chamada de “uma aeronave”. Quando você quer fazer o nenê comer o papá, você não fala “Olha a aeronavezinha!”.
Tudo bem – eu seu que muita gente tem medo de avião, e que talvez usar um eufemismo possa ser útil nessa hora. Mas desde que a palavra escolhida não lembre justamente “objeto voador”, concorda?
Além do quê, é impossível não ter medo de uma coisa que o tempo todo é “reposicionada”. Por que não trocam o “devido ao reposicionamento da aeronave” por um simples pedido de desculpas? Sugestão: “Atenção passageiros do voo tal. Pedimos desculpas, mas o seu embarque mudou para o portão 9.” Pronto! Perdi o medo!
Eu mantenho o otimismo, porque sou do tempo em que todas as companhias aéreas falavam “é um prazer tê-lo tido a bordo”. Se o tê-lo tido, que parecia ter estabilidade no emprego, já dançou, não é impossível pensar na aposentadoria da “aeronave”.
Um brasileiro inventou o avião, não a aeronave. Os aeroportos não ficarão prontos para a Copa, mas até lá pelo menos podemos voltar a falar “avião”. Vamolá, Brasil!