29 de abril de 2011

Real

Sim, alusão ao (discreto, quase imperceptível) casório que está rolando na ilha, mas o título é pura isca. O assunto é outro. Mas também é o mesmo. A ele.
Ouço Francisco, álbum de Chico Buarque, quando surge o verso
“Que nobreza você tem, que seus lábios são reais...”
Uma parceria de Chico e Vinícius Cantuária, “Ludo real”.
Ainda há os que acham que tradução é bico. Ou que é um bico. Gostaria de vê-los na tentativa de verter a palavra acima pra outro idioma – sem nota de rodapé, e usando uma única palavra.
Já vi quem tentou isso, em francês, e quebrou a cara. Ou, como no verbete do dicionário de Millôr (The cow went to the swamp), "broke the face".

26 de abril de 2011

Cat-sitter

Mulher viajando a trabalho, sou convocado para as funções de babá de felino. Mas o que dizer de Valentina, que não seja comentário requentado – daqui, ou da antiga casa virtual? Breves drops.

1.       Ela é dotada de uma espécie de sensor: basta que me apareça um trecho mais complicado na tradução (ou revisão), para que os miados beirem a histeria. É o mesmo dispositivo que é ativado assim que colocamos a mão no telefone. Sensor que fica mais apurado com a partida da Mulher.
2.     A combinação inapetência + ausência da voz e barriga maternas provoca no animal um estado de regressão (em todas as acepções da palavra).
3.      Oportunidade ímpar que a vida lhe atira ao colo: “Mostre como lida com um felino descompensado (taí, o termo do jargão médico a define bem), e dir-te-ei quem és”.
4.      Um afago sempre ajuda, mas muita cautela com o efeito "pedra de crack": quando vai ver, o vício já está fora de controle.



24 de abril de 2011

Na pele de Cadão Volpato

Para quem não sabe, além de músico (ex-Fellini) e escritor, Cadão é editor e apresentador do programa Metrópolis, da TV Cultura. Volta e meia atua como mediador em bate-papos literários.

Eu queria estar em seu lugar. Num programa diário de uma hora, traz as novidades do cinema, teatro, literatura, artes plásticas, música etc. Habilidoso ao conduzir as prosas, as perguntas de suas entrevistas demonstram um genuíno interesse, e quase nenhum traço de afetação (cena cada vez mais rara em programas do gênero). Antenado em todas estas áreas, está em contato direto com o biscoito fino da produção cultural do país.

Eu não queria estar em seu lugar. Assisto regularmente ao programa, mas nunca de cabo a rabo. Para fugir de uma overdose. Ecos da canção de Caetano, fim dos anos 60: “Quem lê tanta notícia?”. Dia desses, outro programa de TV trouxe o depoimento de uma mulher que, por dever profissional, ouve cerca de 300 músicas por dia. Me imagino nesse ritmo, e já tenho uma ligeira vertigem. Encontro alento nos versos de Paulinho Nogueira: “...duvidar, então, do que querem fazer você olhar, fazer você ouvir, fazer você pensar...”.

Estivesse eu na pele de Cadão... curtiria, decerto. Só resta saber quanto tempo demoraria pra ter de dar entrada numa clínica de desintoxicação cultural.




20 de abril de 2011

O TGV e o carro de bois

Surge a necessidade de enviar, via e-mail, um arquivo escaneado. Espio o tamanho: 1.700 KB. Hum. Caso de ir pra lan-house, de novo?
Não, vamos lá, a fé não costuma faiá. Sigo os passos, e percebo que dá pra fazer a operação. Mas no ritmo do modem local. Basta esquecer tudo o que você já ouviu falar sobre a tecnologia.
De curioso, cronometro. “Arquivo enviado com sucesso”. Tempo consumido no envio: 15 minutos e 50 segundos.
Ouço de meu mano, um dia depois, que em sua casa em Sampa, a conexão está agora “10 vezes mais rápida”. Imagino-o trampando daqui.
Aqui, a relação entre homem e tecnologia é, simplesmente, outra: você clica em “enviar”, sai, passa um café, capina a horta toda. Ao voltar, está lá, envio quase no final.
“Ansiodorum”, “Passaneuro”, e ansiolíticos afins? Que nada, prescrição das boas é uma temporada de seis meses cá na roça.

PS: Horas depois, tou lá na cidade, lendo diante do coreto, quando passa um rapaz. Apuro os ouvidos: ele está no meio de uma D.R. com a namorada, ao celular. Detalhe: montado num cavalo (meio de transporte comum nestas bandas)! Esta veio pra ilustrar o post.

18 de abril de 2011

Da escola, de síndromes e quetais

Não basta que o cidadão padeça durante seis horas diárias no banco escolar. (Eu disse “seis”? Por enquanto, pois a moda que começa a pegar é escola em tempo integral. Quanto mais longo o período em que os pais puderem estacionar os filhos, melhor). Seis horas é pouco: é preciso mantê-los ocupados, fora da escola. E dá-lhes um caminhão de tarefas (além do judô, inglês, computação, natação, teatro e do escambau), até mesmo nas férias.

Você completa 11 anos, entra na fase em que, biologicamente falando, o corpo pede mais horas de sono. É quando... zás! Uma cúpula de burocratas decide que, a partir de agora, 5ª série, você passará a estudar pela manhã, acordando às 6 da matina.

O quê, exatamente, motiva a insanidade destas duas situações? Primeiro palpite: sadismo (com toques de vingança); o discurso, você já conhece: “eu sofri, foi bom para mim, agora é a sua vez”. O segundo: a Síndrome da Pequena Autoridade (SPA), que acomete não apenas professores e pedagogos, mas gente muito comum, como zelador de edifício. O Juanito, que se revela quando lhe é dado um carguito.

Um possível terceiro motivo, mais prosaico – a pura inércia, a vida em estado de sonambulismo: “Ora, se tem funcionado assim há 250 anos, mudar pra quê?”.

Adélia Prado: "Quando a escola acabar, quero nascer outra vez".






15 de abril de 2011

Tradução e manipulação

“Desde então Jesus começou a pregar e a dizer: ‘Arrependei-vos, pois o reino de Deus está próximo (Mateus, 4)”.

“A verdadeira palavra em hebraico para ‘arrepender’ é teshuvah. Teshuvah significa ‘retornar’ e também ‘responder’. Ambos os significados são belos. Retornar a Deus é responder a ele.
(...)
Ouça a frase, quando eu digo assim: ‘Retorne, pois o reino dos céus está próximo’. Toda condenação, todo pecado e todos os absurdos que criaram culpa no homem desaparecem: apenas com a mudança de uma única palavra traduzida corretamente. Uma única palavra pode ser significativa. Todo o cristianismo desaparecerá se, em vez de ‘arrepender’, a tradução for ‘retornar’. Todas as igrejas, o Vaticano, tudo desaparecerá, porque eles dependem do arrependimento.
(...)
Jesus nunca disse ‘arrependa-se’. Ele teria rido da palavra, porque a coisa toda foi corrompida por esta palavra. As igrejas sabem perfeitamente bem que a palavra é uma tradução errada, mas continuam insistindo nela, porque ela se tornou seu fundamento. Retornar é tão simples: depende de você e de seu Deus; nenhum mediador é necessário, nenhum agente é necessário”.

Osho, Palavras de fogo – Reflexões sobre Jesus de Nazaré, tradução de Anand Samashti, Ed. Verus.


12 de abril de 2011

Drops rurais

Flashes do dia a dia, que fazem o deleite dos sentidos.

1.       O azul inclassificável da nova borboleta que invade o pedaço.
2.      O voo rasante do tucano, que tira uma fina de minha orelha, enquanto penduro roupas no varal.
3.      O galho do abacateiro vem abaixo, com o peso dos frutos. No chão, quatorze deles.
4.      Enquanto cantamos em volta da fogueira, uma cigarra decide fazer o contraponto. Só que dentro da casa.
5.      O retorno discreto do pica-pau.
6.      O inebriante cheiro de grama recém-cortada. Que só se equipara ao aroma de bosta das vacas do curral do kibutz, marca indelével em minha memória olfativa.










11 de abril de 2011

Musa única

Comovente artigo de Patrícia Palumbo, no jornal de sábado, sobre a música como forma de comunicação com o Divino. Texto que releva uma generosidade rara em relação aos músicos de modo geral – virtude que ela já deixara registrada em seu livro de entrevistas, Vozes do Brasil.

Horas depois, assisto As melhores coisas do mundo, de Laís Bodansky. Filme absurdamente sóbrio, sem a mínima afetação. Nele, a música é quase um personagem e se revela essencial para que os adolescentes consigam comunicar emoções.

Um baita dum blablablá, pode parecer à leitora. Mas para quem está envolvido com música até a medula (e começou a dedilhar o violão ainda na fase teen), essas “sincs” não têm nada de banal.

8 de abril de 2011

Uma tradução

Em sua edição original, este livrinho foi classificado com o simpático nome de “Popular Psychology”. Por aqui, sai numa série chamada “Pensamento Eficaz”. Curti muito traduzir. Revivi alguns dos (poucos) bons momentos passados na escola.
Recomendo, não apenas aos fãs da matemática, mas também às vítimas d’algum trauma com os números. Já nas livrarias:
Aumente sua habilidade com os números – Maneiras de fazer contas com mais agilidade, de Andrew Jeffrey. Ed. Publifolha, 2011.

6 de abril de 2011

O passado perfeito

Tem um quê de acaciano, este post, mas vá lá. Para um tempo verbal do passado do inglês, nossa língua apresenta três possibilidades. I had done pode virar eu tinha feito, eu havia feito ou eu fizera. É o três-em-um linguístico.
Taí, a diversão do tradutor. Atentar para a variação. A depender do contexto, caberá mui bem, a terceira destas opções. Embora já extinta da língua oral, é perfeitamente adequada à escrita, e ao registro formal. Eu tinha + particípio, por sua vez, transmite naturalidade, mas seu uso excessivo corre o risco de encher o saco do leitor.
Sem falar dos vários casos em que o “passado perfeito” deles vira passado simples, no vernáculo. Ilustrando: “When he arrived, I had already been here”. Se, ao traduzir, você tascar um “eu já estivera”, dança.
Tropecei inúmeras vezes neste tempo verbal, na mais recente tradução. Um bom motivo para manter afiados, o radar e o ouvido (impiedoso, diante de certas palavras e combinações).
Particularmente saborosa é a sua nomenclatura. “Passado perfeito”. Parece Proust – só falta a madeleine. O português não deixa por menos, e beira o surreal: “Pretérito mais que perfeito”. Transcendeu o próprio Criador. É o passado com um plus a mais, como diria a moçada da publicidade.

4 de abril de 2011

P. G. Wodehouse

Já fiz menção a este autor inglês, um de meus prediletos. Não há muito o que dizer dele, que já não tenha sido comentado com propriedade. Deixo, então, uma palinha para o leitor. A cena, uma prosaica briga entre cães.

“There is about any dog fight a wild, gusty fury which affects the average mortal with something of the helplessness induced by some vast clashing of the elements. It seems so outside one’s jurisdiction. One is oppressed with a sense of the futility of interference. And this was no ordinary dog fight. It was a stunning mêlée, which would have excited favourable comment even among the blasé residents of a Negro quarter or the not easily-pleased critics of a Lancashire mining-village. From all over the beach dogs of every size, breed and colour were racing to the scene: and while some of these merely remained in the ringside seats and barked, a considerable proportion immediately started fighting one another on general principles, well content to be in action without bothering about first causes”.
The Adventures of Sally, P.G. Wodehouse, Penguin.